A prisão de
condenados do mensalão deu relevância a um tema que pouco mobiliza o
país: as péssimas condições dos presídios brasileiros.
Na semana passada, a coluna conversou com o ministro Gilmar Mendes, do
STF (Supremo Tribunal Federal), sobre o assunto. Quando ocupou a
presidência da corte, ele visitou presídios em todos os Estados do país e
chegou a soltar 22 mil pessoas que já tinham cumprido suas penas e
mofavam no cárcere.
O ex-deputado José Genoino, recém-operado do coração, bebeu água de
torneira na Papuda, presídio que não tem sequer plantão médico. É um
lugar destruidor e parece compreensível a preocupação da família dele.
É claro. É claro. Nós deveríamos discutir essa questão de uma maneira
muito aberta e franca para superarmos realmente esse quadro caótico que é
o das prisões. Não faz sentido que, num país como o Brasil, nós
tenhamos presídios sem as mínimas condições para um tratamento digno das
pessoas. Deveríamos chamar a atenção para a responsabilidade de todos
os setores.
Quais?
Do governo federal, via Ministério da Justiça, que tem um fundo
significativo para a melhoria das condições penitenciárias. Das
secretarias estaduais de Justiça. Do Ministério Público, que deveria
fiscalizar os presídios. Do Judiciário. É uma cadeia de
responsabilidades que não cumpre a sua função.
Quando presidiu o STF (Supremo Tribunal Federal) e o CNJ (Conselho
Nacional de Justiça), em 2008, o senhor organizou mutirões carcerários e
visitou presídios em todo o país. O que encontrou?
Um quadro de desmando completo, de abandono, de pessoas amontoadas. O
preso está mal, com problema de saúde, ele é colocado fora da grade, mas
deitado no chão. No presídio de Pedrinhas, no Maranhão, encontramos um
sujeito com o ventre aberto. No Espírito Santo, presos estavam num
contêiner. Os de cima faziam necessidades nos que estavam embaixo.
E todos sabem que é assim.
A relação de pouco caso da sociedade com o sistema [carcerário] se
traduz na relação do poder público com ele. Se faltam recursos, os
primeiros cortes são nessa área. É um quadro de abandono.
E a pressão social é zero.
Não há nenhuma crítica da sociedade. Não há nenhum partido que verbalize
isso. Certa vez me perguntaram por que o STF só cuidava de réus ricos.
Não. O tribunal cuida de réus ricos e de pobres. Mas a imprensa só se
interessa pelos ricos.
Parcela da população acha que criminosos não merecem qualquer consideração.
O preso só perdeu a liberdade, nada mais. A legislação não permite
outras sanções. Por outro lado, essas más condições dos presídios
representam uma ameaça à segurança pública. A omissão do Estado é
suprida por organizações criminosas. Os privilégios são dados não pelo
sistema estatal, mas pelo sistema informal que se organiza no presídio.
O banqueiro Edemar Cid Ferreira, ao contar a sua experiência quando
foi preso, disse que os detentos só pensam em uma coisa: que a mulher e a
filha estão se prostituindo para se sustentar. No desespero, encontram
amparo nas organizações criminosas.
Sem dúvida nenhuma. A falta de cuidados do Estado faz com que a
atividade supletiva [aos presos] seja dada pelas organizações. Elas
passam a prestar um serviço que deveria ser do Estado, das ONGs, dos
segmentos da comunidade. Oferecem advogados, assistência à família do
preso. E se fortalecem.
O preso, no desamparo...
[interrompendo] Ele aceita qualquer oferta. Por isso é preciso realmente
discutir esse tema com seriedade. Não é só um problema de direitos
humanos. É uma questão séria de segurança pública.
E ninguém se importa.
Aparentemente há um certo desleixo, uma certa desídia. Nós já nos
acostumamos com essa situação. Esse é um quadro que nos envergonha.
O que mais os mutirões carcerários revelaram?
Em cerca de um ano, detectamos algo como 22 mil presos há três, quatro,
sete anos, sem inquérito concluído. No Ceará, encontramos uma pessoa
presa há 14 anos sem julgamento. Há aqueles que já cumpriram a pena e
estão esquecidos nos presídios.
E que explicação o juiz dá?
Sempre se diz que é um problema de falta de infraestrutura.
Terceiriza-se a responsabilidade. Mas hoje nós não podemos dizer que os
juízes não têm responsabilidade sobre o caos do sistema prisional. No
CNJ, verifiquei que nós tínhamos juízes da execução penal que nunca
tinham visitado um presídio.
Mas é a obrigação deles.
Talvez isso seja a concretização dessa pré-compreensão negativa que a
própria sociedade tem em relação aos presídios. Isso talvez contamine a
ideologia e a percepção do próprio juiz.
Ou seja, "dane-se".
Pois é. E, por outro lado, as corregedorias não exigem [dos juízes], o
Ministério Público não cumpre a sua função, que é a de fiscalizar as
condições dos presídios. Por isso o CNJ editou várias resoluções
determinando que se fizessem verificações sucessivas das prisões
provisórias. No patamar tecnológico que nós atingimos, temos condições
de saber tudo o que acontece no sistema prisional. O próprio CNJ teria
condições de monitorar isso.
E os advogados?
A OAB não tem nenhum interesse sobre isso. Aliás, os setores de direitos
humanos em geral. Eles quase sempre focalizam o quê? É o preso
político, é o caso [do italiano Cesare] Battisti. Mas eles não se
interessam pelos presos comuns. Esse desprezo da sociedade para com a
comunidade de presidiários contamina todos os segmentos.
E os defensores públicos?
Não há defensores suficientes para a demanda.
Fortalecer as defensorias não poderia ser uma solução?
Elas são órgãos estaduais. E hoje existe toda uma disputa corporativa.
Os defensores querem equiparação [salarial com juízes e promotores]. Os
governadores [que arcam com os custos] veem esse quadro com
desconfiança. Isso [a obrigação de se criar defensorias] está na
Constituição de 1988 de forma muito clara. Passados 25 anos, nós ainda
não temos um modelo estruturado. Há Estados grandes que têm 20
defensores. Nós temos hoje 70 mil presos em delegacias, o que é ilegal. E
não temos advogados para viabilizar esse debate.
O país estaria precisando de um "Mais Advogados"?
Talvez você não precise contratar advogados. Há um campo interessante
para um experimentalismo institucional. Poderíamos pensar num serviço
civil obrigatório para todo jovem egresso das faculdades de direito das
universidades públicas. Eles ficariam um ano fazendo estágio no sistema
prisional. Conheceriam a realidade do Brasil! E prestariam um serviço
relevante ao país. Veja, nós temos hoje um número enorme de bacharéis em
direito. Se tivéssemos um advogado em cada presídio ou delegacia, é
óbvio que teríamos um outro quadro em termos de direitos humanos.
Certamente, nas delegacias, neste momento em que conversamos, estão
ocorrendo torturas.
E por que a ideia não vinga?
Porque nós temos um quadro corporativo no país. A OAB defende os
advogados privados. A Defensoria Pública entende que não deve atuar com
voluntários. Eu até já brinquei: não se preocupem, há pobres para todos.
Há também a questão dos ex-detentos.
No Brasil se diz que nós temos um dos maiores índices de reincidência do
mundo, de 70%. E por quê? Porque ninguém cuida. O único programa
institucionalizado, e ainda assim hoje tocado sem muito entusiasmo, é o
Começar de Novo, do CNJ. É preciso intensificar. Porque aqui está o
controle da criminalidade. Se a pessoa consegue se ressocializar,
obviamente você quebra o ciclo de envolvimento dela com o crime. De
novo: não é só uma questão de direitos humanos. O problema é que
segurança pública, hoje, virou apenas aparato policial.
Lugar de bandido é na cadeia.
A mensagem, em geral, é a do endurecimento. Nada contra. Mas isso dá uma
ilusão de ótica para a sociedade. Não é a resposta adequada a todas as
mazelas. O sistema de segurança pública é mais complexo. Não basta
colocar o sujeito no presídio. Ele pode ser solto no momento seguinte,
porque o juiz não deliberou e houve excesso de prazo, por exemplo. E aí,
na comunidade, a repercussão negativa é enorme. A justiça criminal
envolve o Ministério Público, a Defensoria Pública, o sistema prisional,
a polícia. É por isso que eu digo: nós temos que olhar as árvores e a
floresta. O sistema é de uma disfuncionalidade completa. É preciso um
freio de arrumação, uma "concertación", um grande mutirão institucional
nessa área. Nós temos aqui também o retrato do Brasil: é o caos, graças à
má gestão.
O Estado é o caos na hora em que vai fazer Justiça.
Com certeza. A grande prioridade hoje em matéria de continuidade da
reforma do Judiciário deveria ser a justiça criminal, como um tema de
direitos humanos e de segurança pública. Quantos inquéritos ficam sem
conclusão no país? Em Alagoas, encontramos 4.000 homicídios sem sequer
inquérito aberto.
A Justiça é injusta.
De todo lado nós temos injustiça aqui.
Mônica Bergamo
Folha de S. Paulo